Direção: Karim Aïnouz. Roteiro: Wislan Esmeraldo, Mauricio Zacharias. Direção de Fotografia: Hélène Louvart. Produção: Marcelo Campanér, Mariana Ferraz. Som: Fernando Aranha. Música: Benedikt Schiefer. Montagem: Nelly Quettier. Design de Produção: Marcos Pedroso. Casting: Nina Kopko.
Uma das coisas que podemos pensar mais centralmente em relação a essa figura de Heraldo é essa dele como um sujeito vindo de lugar algum e se dirigindo para um espaço qualquer na tentativa de encerrar um ciclo de violência e subjulgamento. Ao mesmo tempo em que busca iniciar um novo momento pautado na perspectiva de esperança e um futuro melhor, que não aquele marcado pelos traços da caréstia humana.
A questão é que os personagens de Karim Aïnouz podem ser lidos, em sua maioria e em se considerando as obras pautadas nas narrativas brasileiras, como elementos da resistência.
Mas não em um sentido apológico ou meramente celebrativo. De Satã a Suely, passando por José Renato a Guida Gusmão, eles sobrevivem em meio a desfavoráveis condições de atmosfera e espírito. Algo que semelhantemente determina o caminho trilhado por Heraldo até a sua chagada ao motel.
Curioso que a ideia de apresentar o protagonista como esse outsider nesse contexto terceiro mundista obedece uma lógica do risco, mas que não se pauta numa construção mítica do homem sem nome vindo de lugar nenhum. Seria até uma forma interessante de introduzir a sua figura a partir do que ele vive logo após a chegada a esse purgatório entre-realidades.
Mas Karim decide introduzir um preâmbulo com a apresentação dos tipos, aqui liderados pela figura de uma espécie de dama do crime, mas que ao fim das contas não consubstanciam uma ameaça de fato para a estrutura da narrativa.
Por outro lado, esse conjunto dentro do filme acaba até remetendo a um exercício de construção de arquétipos do crime ou de uma vilania heterotopeizada, para citarmos os fluxos entrecortados das teorias foulcaltianas. E que, ao cabo, ajuda na estruturação dessa ambiência de tensão, ainda que ela não necessariamente represente algo de determinante no curso dos eventos da estória.
Tudo parte e se encerra nos limites do motel. Aïnouz elabora um microcosmo mesmo com quatro personagens em um ambiente que parece povoada de gente o tempo, mas que existem dentro da dicotomia daquilo o que apenas o traço acusmático do som permite dar a ver.
O sexo e a sensualidade é algo presente em cada terço da obra e ainda que o realizador reforce o caráter de naturalidade dessa escolha, no sentido de ela não ser o eixo determinante do filme ou não ter sido uma questão vital para o escopo da narrativa, essa fricção entre os desejos dessas vidas colocadas ali em perspectiva orbitam em torno disso, de fato.
No entanto, concordo com o autor ao perceber que é a modulação do uso ou da manifestação da violência o elemento de maior força na trama. O filme aborda o sexo, como essa variação da forma de amor e prazer, e de fato, não coloca a ideia da brutalidade dos contratos sociais como um índice que estaria circunscrito na sua epiderme.
O embate entre Heraldo e Elias é eminente, mas ele nunca se manifesta naquilo o que vemos enquanto um ato de ação. Um soco, uma fricção que seja são gestos encarnados, mas nunca estão traçados no curso dos eventos.
Não se dispensa para essa forma de expressão humana uma centralidade, ela é ocultada porque não é esse estado de violência ou excessão que interessa aqui, ainda que a tensão daquela dinâmica emule essa ideação fortemente. E mesmo quando tudo parece estar nas vias de se consolidar em termos de uma tragédia anunciada, há altruísmo da parte autoritária da dramaturgia.
Isso é interessante porque o cinema brasileiro contemporâneo lida, com algumas exceções, muito mal com esse coeficiente da moderação dos conflitos entre os personagens. Estranho Caminho é um dos mais recentes exemplos dessa experiência de inabilidade, mesmo, com essa particularidade do componente dramatúrgico.
Algo que não pode ser dito sem antes pontuermos que Guto Parente é um bom roteirista. A questão que fica é só te o que acontece no intervalo da escrita ente um projeto audiovisual e outro, haja vista que trabalhos também assinados pelo realizador como Inferninho e Clube dos Canibais destoam totalmente da experiência demonstrada nesse seu mais recente filme.
Voltando a Aïnouz, é nessa consciência da maturidade exigida das narrativas que o cinema do diretor consegue se estabelecer dentro de um esquema sóbrio, maduro em última medida. Não é nada excepcional, haja vista a dificuldade de uma vertente do nosso cinema de se desprender um pouco mais ao lidar com estruturas fílmicas menos presas a um círculo linear de situações ou onde essa mesmas lógicas situacionais estejam menos dependentes de um esquema representacional, hiper explicativo.
Se o cinema é o exercício do sonho colocado em cena, o onirismo é um dos elementos de maior força para o estabelecimento desse traço diferencial que a forma da arte pode reclamar.
Há sonhos nos corredores do motel, sem dúvida, mas eles operam muito mais na veia da inserção semi descompromissada sem que o componente estético mantenha uma correlação orgânica com a narrativa colocada em primeiro plano.
São lampejos de uma fantasmagoria experenciada por figuras assombradas pelas decisões por elas tomadas ou pelos cursos que as vias das suas vidas acabaram tomando.
Mas de fato, o filme não sucumbir a uma representação da violência por ela mesma já é um milagre na nossa prática de realização cinematográfica. A maturidade da mão do autor passa por isso, também.
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Daniel Araújo é jornalista, realizador, crítico e pesquisador de cinema. Mestrando em Comunicação - Universidade Federal do Ceará e Especialista em Cinema e Audiovisual.
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