Publicado pelo Autor no site Um Filme ou Dois
Como descrever a ruína de um período sem deixar de explorar também suas esparsas instâncias de graça? Essa pode ser uma das leituras possíveis dessa mais nova obra-prima de Carax. Esse fluxo conceitual se estende igualmente para a própria dinâmica do arranjo que o musical enquanto gênero dominante do filme organiza.
Sim, filme. E isso é o que Carax faz questão de enfatizar bem ainda nos primeiros minutos do prólogo. Ele nos pede atenção, concentração e respeito total à experiência de imersão que o ato de assistir exige. Tudo soa como brincadeira, mas esse gesto funciona demais para entendermos que, no fundo, é disso que nossa relação com o cinema é feita.
Quando "May we start" começa a tocar vamos entendendo e sentindo isso na prática. Tudo aqui é encenação, por isso não precisamos nos preocupar com mais nada. Estamos seguros. Estamos? Podemos começar? Quando avançamos na estória e nos aproximamos um pouco mais de Henry (Adam Driver) e Ann (Marion Cottillard), logo sentimos que algo não está correto.
Interessante que esse é um índice que Carax faz questão de enunciar não somente pela atmosfera contida nas cenas que ambientam a vivência entre o casal, mas que é reforçado também na própria fala em si dos personagens. Nesse jogo, não basta o conceito sugerido, ele tem de ser elucidado foneticamente no campo do discurso.
Tudo isso fala sobre o domínio. Controle narrativo e estético da reorientação de uma estória que não objetiva necessariamente nos alcançar por meio de uma construção espelhada. Você não precisa se perceber no lugar desses personagens para imergir no filme em si. A ideia é a desidentificação. É perceber nos eventos e gestos dessas figuras tudo o que podemos não projetar.
O universo do showbizz é a base de onde a trama emerge, mas são as repercussões das tragédias particulares desse contexto que modulam o longa nas suas 2 horas e 20 minutos. Ainda assim, tudo é citado de modo bem pragmático. À frente desse tom pesado há sempre uma redução ao nível da descartabilidade que de modo algum reflete uma suposta fragilidade da obra.
Pelo contrário, ela reverbera exatamente essa potência implícita do musical para além do jogo lúdico entre o texto, a encenação e a música. Esse amor e toda a alegria de uma vida partilhada são apenas um pretexto de onde a estória tece uma trilha falsa a fim de que caiamos bela para dificilmente conseguirmos encontrar o caminho de volta para casa.
E a armadilha de Carax é infalível. Porque quando nos percebemos já estamos na metade do percurso. Quando percebemos que tudo isso não vai acabar bem não há ponto que nos permita o retorno seguro de onde partimos. Na experiência dos musicais clássicos, daqueles que adaptam sucessos da Broadway ou das pseudopropostas, como as proposta por Chazeele, há sempre retorno. Aqui não.
Quando Annette fala em discurso dramatizado pela primeira vez, essa voz ecoa com o golpe de uma armadilha inescapável. Ao mesmo tempo, entendemos que a sua posição nesse momento - na crítica aberta do diretor ao circo do capitalismo econômico - cultural da contemporaneidade aqui assumido na forma da paródia do superbowl - é a da personagem que está ali ata nos vingar de todas as injustiças que vimos até então.
O gesto no entanto, não é da mera recompensa fácil feita única e exclusivamente para um público acomodado (o mesmo que lota e assiste passivamente sem se dar a possibilidade de desiludir-se) as produções como as da Marvel Studios e Disney, por exemplo. É contra esse olhar que Carax aponta sua crítica da pós-modernidade.
Seu compromisso é com esse espectador que olha para o filme como um processo, uma matéria viva que vai resistir para além dos créditos finais. Sua (r)existência reside na recusa do próprio "vídeo explicado" que inunda o ciberespaço. A reflexão pode estar lá, mas só faz sentido se vier pela via do debate. Isso é o que Carax pede do nosso olhar. Nada mais.
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