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Hamlet Oliveira

Amor Até as Cinzas (2018), de Jia Zhangke


Na China do diretor Jia Zhangke, a passagem de tempo e a modernidade são o pano de fundo principal para seus protagonistas. Mesmo com o foco no contexto em que se passam suas histórias, Zhangke não permite que os personagens fiquem em segundo plano. Em sua nova obra, Amor até as Cinzas, o chinês volta a trabalhar temas e estruturas vistos nas suas obras anteriores, Um Toque de Pecado (2013) e As Montanhas se Separam (2015), ao mesmo tempo em que mergulha no íntima de sua protagonista.

Novamente com a veterana atriz Tao Zhao no papel principal, Zhangke traz uma história de amor em três atos. Pertencente a uma comunidade de bandidos em uma pequena cidade chinesa, Qiao (Zhao) convive com os foras da lei da região, em meio ao relacionamento amoroso com Bin (Fan Liao), um dos líderes do grupo. A partir do envolvimento de Bin em conflitos com adversários, Qiao acaba sendo presa por levar a culpa de um crime para não prejudicar o amado. Cinco anos se passam e a protagonista busca não só se readequar à nova realidade, como lidar com o que sobrou do relacionamento de ambos.

Foco das três partes do longa, Qiao é uma personagem que cresce a cada cena, tanto por ganhar novas camadas em sua personalidade, quanto por se solidificar como uma protagonista forte e convicta de suas razões. Mesmo com as decepções enfrentadas após sair da prisão, Qiao permanece resistente às tragédias, utilizando de sua astúcia para conseguir dinheiro e reconquistar o próprio patrimônio. Inclusive, os momentos em que a personagem utiliza de artimanhas para conseguir informações ou dinheiro são alguns dos mais criativos do filme, tornando a protagonista totalmente diferente de outras personas já exploradas pelo diretor.

Tal qual em As Montanhas se Separam, mas em uma escala menor, a trilha sonora desempenha aqui um papel importante para a imersão na história. Inserida em pontos-chave, as canções auxiliam no desenvolvimento do clima do romance conturbado de Qiao e Lin.

Apesar do foco ser Qiao, o longa não esquece de fortalecer a personalidade de Bin. Enquanto na primeira parte o então jovem gângster estava no auge do poder e da influência, a decadência dos anos seguintes forçam o personagem a se retrair enquanto a seus objetivos cada vez mais distantes. Nesse ponto, o trabalho do ator Fan Liao é digno de nota, por conseguir transitar entre o homem arrogante e aquele que perdeu tudo devido às escolhas equivocadas que tomou.

A própria relação de Qiao e Bin pode ser relacionada à outro expoente do cinema asiático: Amor à Flor da Pele, considerado por muitos a obra prima de Wong Kar-Wai. A maneira como os personagens interagem, em meio a um amor doloroso, traz um tipo de paixão menos carnal e voltada para o sentimento de perda e do não-alcance das expectativas projetadas. Tal definição poderia ser relacionada a qualquer relacionamento falho, mas que dentro do contexto de gangues, brigas, roubos e golpes do filme ganha um destaque ainda maior.

Jianghu, termo reforçado pelos personagens durante todo o filme, mas que não fica claro sem uma pesquisa posterior, se refere às gangues chinesas das quais Bin é integrante. Em dado ponto do filme, o pertencimento a uma comunidade é trazido como ponto de discussão, tendo como base as jianghu e o afastamento de Bin. Além dessa vertente, a prisão e retorno de Qiao também reforçam a narrativa de retorno para um ambiente que, após alguns anos, pode não ser mais familiar tanto para quem foi deixado para trás quanto para aquele que se afastou.

Apesar dos pontos positivos, Amor Até as Cinzas peca pelo ritmo lento da narrativa. Qiao é uma protagonista interessante, mas a falta de acontecimentos relevantes mais frequentes acabam prejudicando o poder da obra. Contudo, Jia Zhangke continua a se reafirmar como um dos realizadores mais interessantes da atualidade, não somente do cinema oriental.

Publicado pelo Autor no blog Cinema às 8h

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