Há oito anos, “Homem de Ferro” (2008) deu início ao Universo Cinematográfico Marvel, implantando uma fórmula de fazer filmes de heróis com ação, cores e humor, conseguindo sempre um retorno positivo nas bilheterias. Passados 13 longas-metragens, com personagens já estabelecidos e tal fórmula seguida à risca, sempre deixando claro que os filmes individuais se tratam de aquecimento para que eles se reúnam em uma produção futura, chega “Doutor Estranho” (2016). O longa mantém a receita que tem dado certo, garantindo também um padrão de diversão, mas que pode se mostrar um tanto cansativa para aqueles espectadores que buscam inovação. Ainda assim, o herói, nem tão popular entre o grande público, consegue ser um dos trabalhos mais eficientes da Marvel Studios.
Na trama, Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) leva uma vida bem sucedida como neurocirurgião. Sua vida muda completamente quando sofre um acidente de carro e fica com as mãos debilitadas. Devido a falhas da medicina tradicional, ele parte para um lugar inesperado em busca de cura e esperança, um misterioso enclave chamado Kamar-Taj, localizado em Katmandu. Lá descobre que o local não é apenas um centro medicinal, mas também a linha de frente contra forças malignas místicas que desejam destruir nossa realidade. Ele passa a treinar e adquire poderes mágicos, mas precisa decidir se vai voltar para sua vida comum ou defender o mundo.
Ter iniciado o texto com “Homem de Ferro” não foi à toa, pois, além de ter sido o pioneiro dessa safra, o personagem principal de “Doutor Estranho”, Stephen Strange, se assemelha bastante com Tony Stark. Ambos são arrogantes, têm suas vidas mudadas após um acidente e, partir daí, buscam inicialmente salvar as próprias peles, mas absorvem lições de vida e direcionam suas habilidades/poderes para fazer o bem. Como toda história de origem, o roteiro, escrito a seis mãos por Scott Derrickson, Jon Spaihts e C. Robert Cargill, faz todo o serviço de apresentar o protagonista, acompanhar o seu treinamento, até culminar nos inevitáveis confrontos com os vilões, de um jeito que a Marvel sabe fazer muito bem. É como apostar em um time milionário que está invicto contra uma equipe amadora: as chances de falhar são poucas.
É possível captar um pouco da personalidade de cada um que está em cena, mas sem grandes aprofundamentos, muita ação com efeitos especiais impecáveis e piadas o tempo todo para quebrar o ritmo tenso daquele que se encontra em uma jornada de salvação, já que se trata de uma produção para todas as idades. É quase como um manual de instruções que a Marvel vem seguindo. Aqui, a maioria das piadas funcionam, como a implicância de Stephen Strange com o nome do monge Wong – com direito a um momento envolvendo Beyoncé que, por beirar o pastelão, arranca muitos risos – ou com os movimentos da capa que tem vida própria dando surra em bandidos. A necessidade de existir humor quase que em toda cena às vezes soa exagerada, mas nada como fizeram em “Vingadores: Era de Ultron” (2015), por exemplo.
Mas “Doutor Estranho” tem ao seu favor o fato de trazer o misticismo para o universo compartilhado da Marvel, permitindo um leque de novas experiências. Uma fala em específico deixa bem claro: “Enquanto os Vingadores enfrentam as ameaças físicas, nós cuidados das forças místicas”. Se para criar o personagem na década de 60, Stan Lee e, principalmente, Steve Ditko, tiveram influência direta de artistas surrealistas como Salvador Dalí e Frida Kahlo, nos cinemas o visual psicodélico que remete diretamente a “A Origem” (2010), com prédios se deslocando e qualquer outra matéria ignorando as leis da Física, trazem um ar estiloso à produção. Por isso, diferente da maioria das produções convertidas para esse formato, o 3D tem papel fundamental na inserção dessa “viagem”, sendo recomendado assistir na sala de melhor potência de projeção.
Conhecido por comandar filmes de terror como “O Exorcismo de Emily Rose” (2005) e “Livrai-nos do Mal” (2014), o diretor Scott Derrickson traz um pouco do seu estilo, mesmo que sob os fios de manipulação dos produtores da Marvel, como nos devaneios de Stephen Strange quando está no “modo espiritual”, com direito a dedos em formatos de mãos, e até mesmo um nível de violência maior do que os demais longas-metragens desse universo. Inclusive, o tema morte é abordado aqui de maneira mais ousada. O cineasta se mostra bem sucedido na condução das cenas de ação, usando os próprios exageros do longa como um ponto a favor, sem necessariamente deixar o espectador perdido em relação ao que acontece. E se as cenas de luta predominam da metade até quase o final dos 115 minutos de projeção, ele prima por entregar um desfecho inteligente para o duelo contra o vilão maior, o misterioso Dormammu, misturando humor e confronto psicológico.
Apesar de algumas mudanças nos personagens em relação às HQs, seja de gênero (o Ancião agora é a Anciã) ou de etnia (o Barão Mordo agora é negro), a essência está bem fiel à mídia original – a sequência da mesa de cirurgia é tirada diretamente do arco escrito por Brian K. Vaughan. Mas muito do mérito da produção se deve ao protagonista: Benedict Cumberbatch se encaixou perfeitamente no papel, assim como Robert Downey Jr. foi para Tony Stark. Mesmo quando os diálogos são rasteiros, o talentoso ator traz a mistura de charme e arrogância que Strange exige, sabendo dosar até o tom de voz para encarnar a evolução do personagem. Rachel McAdams, no papel de Christine Palmer, foge do estereótipo da mocinha a ser salva pelo herói, mostrando presença forte e humor. Ela poderia ter sido melhor aproveitada, erro que deve ser corrigido nos próximos filmes.
Alvo de críticas por conta da mudança de gênero do Ancião, Tilda Swinton responde com mais uma atuação irretocável, algo que vem sendo uma constante em sua carreira. Chiwetel Ejiofor está correto como o “Barão” (alcunha não mencionada no longa) Mordo, apesar de pouco aproveitado. O mesmo acontece com o ótimo Mads Mikkelsen, encarnando um vilão cujas motivações são interessantes e poderiam ser melhor trabalhadas, mas se restringe a ser o cara que persegue o herói e protagoniza algumas cenas de luta. Afinal, Scott Adkins, eterna promessa dos filmes de ação B, já está lá, representando o capanga bom de briga que praticamente entra mudo e sai calado.
Desde a logo inicial até os créditos finais (que contam com duas cenas, fica o aviso), todo mundo fica muito ciente de que está diante de mais um produto integrado em projetos mais ambiciosos da Marvel. Essa “amarra” pode ter limitado um projeto com tanto potencial, soando repetitivo. Mas só em mostrar uma maior audácia e um protagonista que tem tudo para impulsionar ainda mais esses filmes, “Doutor Estranho” merece respeito.
Publicado pelo autor no Blog Cena Cultural / Tribuna do Ceará.