Em 8 de setembro de 1966, Gene Rodenberry conseguiu levar seu sonho às televisões americanas. Era uma visão de um futuro distante, mas familiar: um futuro de minissaias, penteados com laquê e cores fortes, mas também de alienígenas exóticos, tecnologia de ponta e multiculturalismo. No cerne daquele novo programa, apenas mais uma entrada na grade de programação da NBC, uma previsão ousada: daqui a séculos, nós teremos superado nossas diferenças e vamos nos lançar ao espaço em busca de novos desafios. Vai ficar tudo bem.
Não é exagero comparar a repercussão de "Star Trek" na televisão dos anos 60 ao impacto dos Beatles na música: a série consagrou diversos elementos da produção televisiva que hoje são lugar comum, como o formato de monstro da semana, a construção de um mundo fictício relativamente coeso entre os episódios e a contratação de escritores famosos para contribuírem com roteiros. Mas foi a mensagem otimista do programa que mais ressoou com uma geração acostumada à ameaça constante de aniquilação nuclear. Na década da luta pelos direitos civis, as televisões americanas traziam uma oficial negra - e em plena Guerra Fria, americanos e russos dividiam a mesma cabine de comando como iguais.
Ninguém representa tão bem a filosofia da série quanto Spock, seu personagem mais icônico. Extremamente racional, Spock é, acima de tudo, um ser absolutamente empático e bondoso - e a ligação entre intelecto e ética é o centro moral de "Star Trek". Leonard Nimoy ficou tão associado ao alienígena de orelhas pontiagudas que pôs o título "Eu não sou Spock" em sua autobiografia. A relação de amor e ódio com sua criação perdurou por muitos anos, até uma inevitável aceitação em suas últimas décadas de vida - em 1995, Nimoy lançou sua segunda autobiografia, "Eu sou Spock".
O legado de "Star Trek" transcende sua mídia - os bastidores da produção do programa chegam a ser tão ou mais interessantes que a série em si, compondo uma verdadeira mitologia explorada em livros e documentários. Coisas como o famoso encontro entre Nichelle Nichols e Martin Luther King, que a persuadiu a não abandonar a série devido à importância de Uhura para a diversidade negra na televisão; o ativismo de George Takei, provavelmente o maior e mais influente militante LGBT de Hollywood; os relacionamentos tumultuosos entre os membros do elenco, cujas carreiras co-dependentes serviram de palco para brigas e amizades intensas, tal qual uma banda; a forma como a série inspirou uma geração de jovens a se tornarem cientistas e engenheiros.
Quase todos os hábitos que associamos ao fandom moderno têm sua origem na série. E foram novidades criadas não apenas por fãs de "Star Trek", mas, mais especificamente, por fãs femininas de Star Trek: Joan Winston, organizadora da primeira convenção de fãs; Bjo Trimble, uma das líderes da bem-sucedida campanha para evitar o cancelamento do programa; Devra Langsam e Sherna Comerford, editoras do primeiro fanzine dedicado à série, onde também surgiram as primeiras fanfics.
Mae Jemison, a primeira astronauta negra, se inspirou em Uhura ao decidir entrar na Nasa, e quando Samantha Cristoforetti preparou a primeira xícara de café no espaço, ela estava usando um uniforme da Federação dos Planetas Unidos. "Star Trek" sempre teve um lugar especial nos corações de fãs e criadoras de ficção científica.
Em 1987, estreava a encarnação seguinte do programa, "A Nova Geração". Ainda mais utópica - Rodenberry chegava a ser criticado pela equipe de roteiristas pela dificuldade de criar conflitos em um futuro tão perfeito - a série foi, de certa forma, até mais ousada que sua antecessora: enquanto a série original surfava a onda da contracultura pacifista dos anos 60, "A Nova Geração" foi lançada em plena Era Reagan. Quando os cinemas americanos traziam heróis musculosos que resolviam problemas usando violência, "Star Trek" tinha como protagonista um francês de meia-idade careca, fã de Shakespeare e com domínio absoluto de diplomacia.
13 filmes e 7 séries de televisão depois de sua estreia, a franquia permanece viva - com o recente "Star Trek: Sem Fronteiras", terceiro filme da trilogia iniciada pelo reboot de 2009, e com o lançamento em 2017 de "Discovery", a primeira série de televisão de "Star Trek" em mais de 10 anos.
Não seria necessariamente ruim que a franquia já tivesse sido aposentada - como a Ira de Khan nos ensinou, há valor em encarar a própria morte com dignidade, em aceitar o fim como elemento essencial da vida. O impacto cultural de "Star Trek", afinal, jamais poderá ser apagado.
Mas a missão da espaçonave Enterprise continua de pé, prolongada de 5 para além de 50 anos. Talvez, de tempos em tempos, nós precisemos dessa injeção de otimismo e descoberta. Talvez "Star Trek" deva continuar existindo como uma lembrança de que há um futuro no horizonte, se trabalharmos juntos, e de que mesmo com todo a incerteza ao nosso redor, ainda podemos olhar para o céu.
Publicado pelo autor no Tapioca Mecânica.