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Ailton Monteiro

For Rainbow 2016 | "Amor Maldito" (1984) e a vivacidade de um novo cinema brasileiro


Em uma edição do For Rainbow em que houve muitos filmes com conteúdo de relacionamentos homossexuais masculinos, mas bem poucos de relacionamentos femininos ou de transexuais, mais uma vez a Mostra Lilás traz um clássico do cinema brasileiro em película. No ano passado foi a vez de "Vera", de Sergio Toledo; neste ano tivemos um filme um pouco mais underground, "Amor Maldito" (1984), de Adélia Sampaio, a primeira cineasta negra brasileira.

O filme começa com o suicídio de Suely Oliveira (Wilma Dias), uma ex-miss que manteve uma relação com a executiva Fernanda Maia, vivida por Monique Lafond. "Amor Maldito", além de funcionar como uma narrativa sobre a investigação de um amor homossexual em um momento em que isso ainda era pouco explorado no cinema brasileiro, a obra cresce bastante quando se se transforma em filme de tribunal, quando a história dessas duas mulheres é costurada pelos depoimentos de diversas testemunhas.

De maneira inteligente, o roteiro de Adélia Sampaio e do escritor José Louzeiro mostra muitas vezes as incongruências entre o que é dito no tribunal e o que de fato aconteceu, aquilo que é mostrado através de flashbacks, que em alguns momentos funcionam como uma espécie de alívio cômico em um filme que tem a intenção de mostrar uma sociedade extremamente preconceituosa disposta a colocar uma mulher na cadeia por causa de sua preferência sexual, numa alegoria à caça às bruxas.

Como vivemos atualmente em um país (um mundo, na verdade) de ascensão da direita, em que cada vez mais surgem notícias ou situações escabrosas e inimagináveis, "Amor Maldito" acaba ficando, infelizmente, pouco datado no que se refere ao modo como mostra a inquisição sofrida por Fernanda durante o tribunal, refletindo em nosso presente, por mais que tenhamos passado por muitos avanços nos direitos das relações homoafetivas.

Há um exagero (proposital) na construção, especialmente dos personagens evangélicos, mas isso acaba depondo mais a favor do que contra o filme. A exibição no For Rainbow contou com a presença da diretora Adélia Sampaio, que informou que, apesar de finalizar o filme com os dizeres de que se trata de uma obra de ficção e que qualquer semelhança é mera coincidência, essa informação foi colocada por pressão das igrejas protestantes, e que se trata sim de uma história baseada em um fato ocorrido no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.

* * *

Quanto à mostra competitiva, falemos brevemente de "Antes o Tempo Não Acabava" (2016), de Fábio Baldo e Sérgio Andrade, que além de ser um longa ousado e especial, trata de um assunto delicado, que é o questionamento e até mesmo um enfrentamento de uma tradição indígena, em especial o infanticídio e a busca de "perfeição", de uma normatividade por parte de uma tribo. O filme acompanha o drama de Anderson (Anderson Tikuna), um rapaz que tem uma orientação sexual diferente do que é aceito pela tribo, e muito por causa disso se vê em uma espécie de limbo, um sentimento de não-pertencimento a lugar nenhum, já que o mundo dos brancos também lhe é hostil e preconceituoso com sua raça.

Entre os curtas, vale destacar três:

"Rosinha" (2016), filme brasiliense que trata de um triângulo amoroso envolvendo pessoas da

terceira idade, dois senhores e uma senhora. Nem a idade nem as limitações de saúde que ela impõe os impede de usufruir dos pequenos prazeres da vida e do sexo e o filme ainda conta com um jogo de expectativas que funciona muito bem para agradar o grande público. Trata-se do curta-metragem mais bem-acabado do festival, com um trabalho de direção, atuação, montagem e demais aspectos técnicos admiráveis.

Daqui do Ceará, um dos maiores destaques é "Cinemão" (2015), de Mozart Freire, que traz um olhar para o submundo dos cinemas (cabines) pornôs de hoje, que perderam qualquer traço de glamurização do passado, quando eram exibidos filmes da era de ouro do cinema pornográfico. Mostrando a decadência desse universo, Freire mostra que a sedução da imagem ainda permanece viva, ao mesmo tempo que nos apresenta um filme que flerta com o cinema de Abbas Kiarostami e ainda tem o mérito de contar sua história sem nenhum diálogo, e conseguindo construir uma obra cujo caráter marginal não se opõe à sofisticação visual.

O Ceará também pôde apresentar uma obra de valor admirável pela inventividade e pela ousadia, "Antes da Encanteria" (2016), de um coletivo do interior do estado formado por Jorge Polo, Lívia Bezerra, Elena Meirelles, Gabriela Pessoa e Paulo Victor Soares. Trata-se de um filme em segmentos que aparentemente não busca uma homogeneização, embora se perceba, ao fim, que há sim uma unidade. O primeiro segmento brinca com o uso de uma narrativa em voice-over para imagens que quase funcionam como fotografias, e que descamba para uma viagem de ácido, ou melhor, de chá alucinógeno. Mas o jogo não termina por aí e um diálogo entre um jovem rapaz gay e sua avó traz uma naturalidade que contrasta com o segmento anterior. Essa brincadeira entre o real e o fantástico permeia todo o filme, até culminar em uma cena que remete a filmes de horror mostrada com uma música pulsante e enérgica.

Ailton Monteiro integrou o júri Aceccine do 10º For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual, em novembro de 2016.

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